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O rádio sempre aceitou tudo, e é assim que perde valor

O rádio sempre aceitou tudo, e é assim que perde valor

Historicamente, o rádio se consolidou como um dos meios de comunicação mais acessíveis e democráticos. Mas o rádio sempre aceitou tudo, e isso o faz perder valor.

Quando você anda pelo interior do Brasil, percebe claramente como o rádio se tornou um veículo que aceita qualquer coisa. Recentemente, ouvindo rádio enquanto dirigia, me deparei com uma situação infelizmente comum: duas músicas tocaram, seguidas por uma entrada repentina de dois locutores perdidos, mais o padre da cidade e um anúncio de bingo de frango da paróquia que se estendeu por mais de 12 minutos. Não é porque é o padre da cidade que ele pode chegar e já entrar no ar de forma imediata e desorganizada. Ele não terá nenhum problema se precisar esperar de 10 a 15 minutos tomando um café. É só pedir, com educação, para aguardar.
Será que o ouvinte gosta tanto assim de ouvir três pessoas falando sobre um bingo por 12 minutos?
Isso é um reflexo de como o rádio se tornou um canal onde tudo pode acontecer a qualquer momento, sem planejamento.

O rádio sempre aceitou tudo. Quando um artista quer lançar uma música em troca de cinco copos Stanley, que talvez nem sejam originais, toca-se várias vezes a música. E mais: tem artista fazendo mais de 10 blitz da mesma música, e o rádio aceita. O rádio não discute com o artista sobre a relevância da música, sua qualidade ou o impacto que ela terá na audiência. Simplesmente, aceita. E você pode me dizer: “mas se a gente questionar o artista, ele vai lançar a música só no digital”.
Bom, se o rádio ainda enxerga o digital como concorrente, é melhor levantar a bandeira e fechar as portas de vez.

Falando em digital, quantas vezes o rádio aceita o argumento de alguns possíveis clientes de que não precisam mais do rádio porque fazem impulsionamento? O vendedor só abaixa a cabeça e vai embora, pois é mais fácil culpar o digital.

O rádio sempre aceitou tudo. Quantas vezes o cliente chegou com um spot comercial abarrotado de informações? Dez ofertas, sendo que o ouvinte vai perceber apenas as 3 primeiras. Mas o rádio aceita tudo, sem questionar. Não há uma conversa sobre a efetividade da mensagem. O importante é não perder o cliente. E assim, o rádio segue aceitando.

O rádio sempre aceitou tudo. Quando o cliente quer que o spot de 30 segundos vire um de 48, o rádio aceita. Afinal, não pode perder a venda. E, ao fazer isso, o meio desvaloriza o seu próprio tempo, um recurso precioso. Enquanto na TV, um VT de 30 segundos tem de ter exatamente 29 segundos e meio. Cada segundo conta, mas o rádio aceita perder esses segundos porque não quer desagradar o cliente. Isso não é flexibilidade, é mostrar falta de valor.

Há 102 anos, os textos publicitários no rádio são os mesmos. Isso acontece porque o rádio sempre aceitou tudo.

Quantas vezes as agências enviaram para o rádio comerciais com “veja essas ofertas”, pois era o mesmo áudio do comercial de TV, e o rádio aceitou?
Para quem não entendeu: no rádio se ‘ouve’, não se ‘vê’ ofertas.

Alguns podem argumentar que isso demonstra a flexibilidade e agilidade do meio. No entanto, o que vemos é o contrário: ao aceitar tudo, o rádio se desvaloriza. Quando abrimos espaço sem critérios, sem protocolos, mostramos desorganização. E onde há desorganização, não há percepção de valor. O ouvinte, o anunciante e até mesmo o mercado musical deixam de enxergar o rádio como um veículo estratégico e organizado, pois basta mandar um Whatsapp com a musica ou material publicitário para ser veiculado.

O rádio sempre aceitou tudo. Quantas vezes recebemos faixas com áudio de baixa qualidade e as colocamos no ar com receio de questionar? Ou seja, o rádio sempre aceita tudo.

O rádio sempre aceitou tudo. Quando um político ou personalidade chega sem aviso, o rádio corre para colocá-lo no ar, interrompendo a programação e quebrando o fluxo. Não há planejamento, não há uma sequência respeitada. O rádio, mais uma vez, aceita tudo. E assim, vai se desvalorizando aos olhos do público e do mercado. Lembre-se de que o político e a personalidade precisam muito mais do rádio do que o contrário.

E essa aceitação vai além do conteúdo. O rádio sempre aceitou ser visto como o “primo pobre” da comunicação. E, de certa forma, nós mesmos provocamos esses pensamentos. Sempre estivemos atrasados em relação às outras mídias. Por exemplo, enquanto as TVs já são digitais, com seus sistemas de transmissão digital, seus aplicativos de streaming e agora a TV 3.0, o rádio está achando bonito o discurso de que vai ser a nova “TV”.

O rádio precisa entender que não é simplesmente sobre ter uma câmera no estúdio e transmitir a programação visualmente. O rádio não deve se tornar TV. Ele deve ser digital. O digital não se resume a ter imagem, envolve uma evolução completa na forma de se comunicar, de se apresentar, de criar conteúdos, de engajar e de entregar valor ao público.

O rádio sempre aceitou tudo. No Brasil, a migração das rádios AM para FM foi mais um exemplo disso. Poderíamos ter adotado um sistema digital, mas, em vez disso, aceitamos uma solução cara, mas pobre, enquanto a TV está implantando, após seu sistema digital, a TV 3.0.

A pergunta que fica é: até quando o rádio vai continuar aceitando tudo? O rádio precisa mostrar que é um meio que agrega valor, que tem protocolos e organização, e que é capaz de entregar uma experiência coesa e de qualidade para o ouvinte e para o anunciante.

Ser flexível não significa aceitar tudo. Ser flexível significa entender o mercado, adaptar-se às mudanças, mas sem perder o foco na qualidade e no valor que entregamos. Está na hora de o rádio ser mais criterioso, de estabelecer limites e de voltar a discutir com o mercado musical, com os anunciantes e com o público. Só assim vamos recuperar o respeito e o valor que o rádio sempre mereceu.